''Todos os dias acontecem no mundo coisas que não são explicáveis pelas
leis que conhecemos das coisas. Todos os dias, faladas nos momentos,
esquecem, e o mesmo mistério que as trouxe as leva, convertendo-se o
segredo em esquecimento. Tal é a lei do que tem que ser esquecido porque
não pode ser explicado. À luz do sol continua regular o mundo visível.
O alheio espreita-nos da sombra.
(...)
O próprio sonho me castiga. Adquiri nele tal lucidez que vejo como real
cada coisa que sonho. Era perda, portanto, tudo quanto a valorizava como
sonhada.
(...)

Escrevo isto sob a opressão de um tédio que parece não caber em mim, ou
precisar de mais que da minha alma para ter onde estar; de uma opressão
de todos e de tudo que me estrangula e desvaira; de um sentimento
físico da incompreensão alheia que me perturba e esmaga. Mas ergo a
cabeça para o ceu azul alheio, exponho a face ao vento
inconscientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto,
esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas fico
diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não porque me
compreenda, mas porque, tendo-me tornado outro, me deixei de poder
compreender. No alto do céu, como um nada visível, uma nuvem
pequeníssima é um esquecimento branco do universo inteiro.''

Fernando Pessoa - Livro do desassossego

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