Sonhar ou Agir...


''Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue
a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada.
Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a
aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui
me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo
ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde
esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as
músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo
meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento,
para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que
me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem
procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido
um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o
lerem, nem se entretiverem, será bem também.
Tenho que escolher o que detesto - ou o sonho, que a minha inteligência
odeia, ou a acção, que a minha sensibilidade repugna; ou a acção, para
que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos, não escolho nenhum; mas, como hei-
-de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra.''


Livro do Desassossego - Bernardo Soares

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